domingo, 9 de outubro de 2011

Meu mini manifesto pela bicicleta

Mãe, entendo suas preocupações. A bicicleta não é um viés para me machucar. Eu, embora não pareça, não curto ficar ralado ou com pé quebrado e usando muletas. É uma forma saudável que encontrei de me exercitar e me manter bem. É a minha hidroginástica. Enquanto eu posso. Já já vai ser otura coisa. Me faz bem, me faz sentir alerta, estimula mil sentidos. A cabeça funciona que é uma beleza.

Aliás, quando foi a ultima vez que voce me viu acordando num domingo as 8 da manhã por vontade própria? Pois é, fiz isso hoje. Com um sorriso no rosto. E quando vi que choviscava lá fora fiquei ainda mais orgulhoso, porque já estava de pé e não voltaria pra cama. E foi debaixo de garoa que eu pedalei boa parte dos 27km de hoje. A outra parte foi debaixo de um toró terrível ali na região do Jockey Club. Arrependimento? Nenhum. Raiva da chuva? Nenhuma. Eu estava lá, e ela também estava lá por alguma razão.

Interpretei que foi para me dar uma prévia do que será a descida dos 80 km da Serra do Mar na quarta-feira. Não, não é pela Estrada Velha, mas pelas novas estradas de manutenção da Ecovias. Olha que bacana essa oportunidade, olha que legal seu filho percorrendo a serra que os jesuítas subiram, não em lombo de burro, mas num veículo impulsionado por ele mesmo. Um veículo que faz ele se sentir vivo, com o maldito e abençoado vento no rosto. E a impagável sensação de estar vivo. Continuo te amando e sendo seu filho de sempre. Mas me desculpe, pois não vou desistir sem tentar.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

O retrato do Brasil num acidente de trânsito

Uma conversão proibida, uma rodovia federal, um carro preto e outro vinho, velho e com a luz apagada, colisão. Ninguém viu chegando. Chegou. E com muita força. Força. Muita. Protege-se o rosto. Barulho de vidro estilhaçando. No instante seguinte você pergunta a todos se estão bem. O olhar de quem acaba de sofrer um acidente automobilístico é absolutamente animal. Do instinto de sobrevivência aflorado. Pouco sangue escorria do nariz dela, ufa. Esperava ver o inferno quando me virei, sentado no banco do passageiro. Conseguimos todos os quatro sair andando bem.

O casal já estava do lado de fora, assustado, mas bem. Ele, mais para nervoso e exaltado, dizia que tinha acabado de comprar o carro, seu primeiro, de ano 1986. E que não tinha habilitação, mas que estava tirando-a. Ela, mais calma, se preocupou conosco. Ambos tinham cortes nas pernas que não pareciam feios.

Os bombeiros vieram. Com muita rapidez. Dois carros, uma ambulância. Fomos todos atendidos, com calma e dedicação, e uma atenção invejosa. Ah, se os caixas de banco, os seguranças de boate e os políticos de Brasília vissem. Por amor ao próximo, por honra. Deviam divulgar mais o lema ‘vida por vidas’. O motorista do outro carro disse que era de SP também mas que morava ali há muito tempo, se eu conhecia Heliópolis, de onde ele era. Tentativa de intimidação?

Ainda bem que estávamos em três carros, portanto deu para dividir funções. Alguns rumo ao hospital. Outros ficaram com bombeiros por lá, na Rio-Santos parcialmente interditada, com o que sobrou do Uno 86 no meio da pista. Esperando, junto com o guincho do seguro, a Polícia Rodoviária Federal para fazer a perícia e depois irmos à delegacia registrar a ocorrência. Há uma única viatura para dar conta de um trecho de quase 200 quilômetros.

Andei de ambulância do resgate, com sirene. E foi legal. Claro que só estou contando isso porque não aconteceu nada de grave. Uma vez na vida, basta. No hospital, raio xis, gaze, e analgésicos. PS da Santa Casa de Angra dos Reis, não recomendo pela estrutura, mas pela dedicação dos plantonistas num sábado à noite. Novamente, de uma dignidade de fazer inveja a quem manda no País. Ela estava bem, o cortezinho de 4 milímetros no nariz estancou. A boca inchou, é verdade, mas ela e todo mundo sabia que tinha sido pouco pelo tamanho da batida. O ortopedista era Renato, como meu velho, lhe disse. Com minha chapa do ombro nas mãos, afirmou que era apenas contusão muscular, receitou. Sorriso no rosto. Era o quarto a dizer que tivemos muita sorte aquela noite.

Recebemos alta, e convocações para comparecer à DP, onde um solitário investigador estava de plantão. Na parede, um aviso à caneta: ‘Por favor não sente no sofá com a arma no coldre, pois o sofá rasga’.

Infelizmente os documentos da motorista e do carro ainda não haviam chegado porque era necessário que os bombeiros entregassem à Polícia Rodoviária Federal, que após periciar, entregaria os documentos à Polícia Civil junto com seu laudo. Portanto, deveríamos voltar na manhã seguinte. Domingo de manhã na delegacia de uma cidade litorânea brasileira. Claro que não daria certo.

Já havia se passado mais de três horas do acidente, todos bem, atendidos e liberados. E nada o que fazer na delegacia, sem o laudo da PRF. E o guincho não podia rebocar os veículos sem o tal papel. Enquanto isso, fizemos um rodízio nas funções e coube a mim ir esperar junto ao bombeiros a chegada dos federais para então acionar novamente o seguro, que acionaria novamente o guincho.

Antes disso, comemos no Max Burguer, e alguns sanduiches foram levados como gentileza aos bombeiros, alguns deles sem comer desde a hora do almoço. Já passava da 01h33 quando o capitão responsável ordenou que recusassem a gentileza, pois estaríamos ‘comprando-os’. Engraçado pensar como simples sanduiches de madrugada ‘comprariam’ bombeiros que – além de nada terem a vender - , tiveram peito para enfrentar homens do BOPE (armados de fuzil) na porrada por um justo e merecido aumento de salário.

Mais três horas de prosa com um cabo muito educado e devoto do que faz. Disse que não há sensação melhor do que chegar em casa após ter salvado uma vida. E nem sentimento pior do que perder outra vida em suas mãos. Contou-me como foi um dos linhas de frente da invasão do quartel central em junho, e deu (sem querer) uma aula de dedicação e profissionalismo.

As amigas advogadas descobriram que a apólice não cobriria imprudência da motorista e menos ainda, pagaria o carro do terceiro. Portanto criar uma história se fazia necessário para obter um laudo que obrigasse o seguro a pagar tudo. E toca eu a tentar mentir às 4 horas manhã – hora em que a PRF chegou, quase 6 horas depois do acidente – e convencer os hómi de que apareceu um bêbado na estrada, a motorista tentou desviar, perdeu o controle do carro, e o de trás veio e colidiu.

Tudo o que eu não queria era mentir depois de tudo o que tinha acontecido e da sinceridade com que o mundo e o Brasil tinha se mostrado para mim naquelas últimas horas. E é obvio que não convenci o PRF com cara de corrupto caricatural, estilo Tropa de Elite. Ele queria porque queria falar com a motorista, que aquela hora já dormia – ou tentava, pelo menos – tranquilamente na pousada.

Ficou óbvio que só liberaria os documentos do carro mediante propina. E meu medo de deixar duas meninas irem negociar com policial corrupto. Ainda tinha que esperar o guincho, que chegaria em até uma hora. Isso porque estávamos na frente de uma das favelas mais perigosas da região, Comando Vermelho, claro. E que era ponto de desova de corpo. Eu continuava esperando o guincho, agora sem bombeiros para tranquilizar.

As meninas foram, falaram, e voltaram com os documentos. O polícia desconfia de mim. A atuação foi convincente, o roxo no rosto e a blusinha branca justa num seio siliconado, ajudou, é fato.

Voltaram, deixaram o documento com o simpático motorista do guincho e rumamos juntos para a pousada. Já amanhecia quando tomei um susto daqueles. Um ruído distante, e logo um barulho seco bem próximo de mim. Me protegi. Era o jornal recém entregue. Com as páginas do Globo sujando os dedos, o cheiro do café fresco cruzando as narinas, me senti vivo. Renascido. E assustadoramente brasileiro.