segunda-feira, 14 de setembro de 2009

A culpa

Quatro bocas para comer, mais as deles dois. Não tinham mais para onde ir. A casa de alvenaria foi erguida em poucos dias, com muito suor, aos pés de um morro. Aos pés, ajoelhada como uma súplica, o dois cômodos implorava para sobreviver ali. Resistência pacífica. Quase 50 metros acima um terreno baldio, ponto vicoso de despejo de entulho, que forçava a terra. O chão rosnava silencioso, discreto.
Área pública, ocupação irregular. Nem precisa de mandato de juiz para os blocos, o cimento e as telhas virarem mais entulho. A lei diz que pode, ponto. Ninguém quer ser ilegal, precisar é foda. 4 filhos é muito até pra rico. Pintor e doméstica, imagine.
Defesa Civil, fiscalização, intimação. Novela de longa data. Derrubaram duas casas vizinhas, não a deles. Ela se trancou em casa com as crianças, ele levou a chave, saiu pra lutar o pão. Dizem que ficaram dois dias debaixo do teto de brasilit, sem sequer sair, receosos. A lei tentou-se fazer, o Estado tentou agir e todos os vizinhos testemunham.
Um ano depois, a chuva veio.
Foi terça-feira, você ainda lembra bem.
Jean e Nedes devem lembrar melhor, mas esse é um adjetivo que deve ficar por muito tempo de fora da vida do casal. Especialmente da dela, que deixou dois filhos Jonas e Jean jogando video-game para ir buscar o de 5 logo ali, recém largado pela perua escolar. Chovia forte, por isso foi até a esquina. 5 minutos e só.
Tempo de ouvir um ruído, seco, abafado, tal qual um trovão dentro de um porta-malas. Nedes virou-se, as pernas recusavam-se a responder aos olhos. Estátua momentânea, uns chamam de choque. Correu, sentiu a lama torturar sob as unhas, sem pensar cavou. Cavou até as mãos sangrarem, e embora ao ouvir um choro sob aquelas infinitas toneladas de barro, as lágrimas que já a inundavam vinham de outra parte de si. Vizinhos apareceram com pás, bombeiros com retroescavadeiras. 6 horas de esperança, de culpa à flor da pele. Mais chuva, quase como o choro daquela mãe, que daria tudo para estar ela ali debaixo daquele mar de entulhos e lama que virou a sua vida. Enquanto isso, o pai lutava o pão, pintando alguma parede na cidade.

Deu aqui, aqui, aqui, aqui e em mais um monte de lugar.

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