E de repente ali está meu pé sendo pisado pelo pneu de Palio Weekend numa rua pouco movimentada do bairro do Pacaembu. Me lembrar da cor seria um pouco muito. Recordo-me do voo, do grito de ‘cuidado, o carro’ e talvez da minha mão no freio. O fato é que a bicicleta está agora em cima da minha cabeça, que estava quase sob o carro. Quase. Que sorte, pensou o leitor.
Que sorte, penso eu. Perguntam se estou bem, alguma resposta mal criada até passa pela minha cabeça, tamanha a clareza que me envolve. Sinto que bateu, mas a dor não vem. Estranho. Um estranho familiar. Dos tombos de criança, dos ralados. Meu cotovelo pulsa, e entre minha clareza e meu bom senso me avisa estar mais ralado que o parmesão na macarronada que começaríamos a preparar.
Era domingo, daqueles azuis de veranico de inverno teimoso de país tropical. Tiram a bike de cima de mim. Voz conhecida, conforto. Tio é pai nessas horas. Sim, consigo levantar, acho. Hospital, bora, diz o atropelador. Aterrorizado está ele. Não eu.
Com uma frieza improvável, e louvável – modestamente – aceitei o Samaritano em detrimento da Santa Casa. Lá tem convênio, pensam. Já que to pagando Amil há um mês e meio, bora. Tio pergunta: ‘acha que quebrou?’. Acho que não, mas tá feio, foi ligamento, aposto.
A pergunta mais feita ao longo da semana foi: ‘doeu muito’. A resposta parece besta – e é mesmo – doeu pouco na hora, mas a consciência da adrenalina que me impedia de sofrer foi linda. Nunca estive num tiroteio, mas imagino que ser baleado num tiroteio deve ter esse gosto. A substância corre tão forte na veia que inibe que o cérebro processe o sentimento de ‘dor’, pura e simplesmente’. E ter a perfeita noção de que isso estava acontecendo, até quase uma hora depois, quando, apesar do coração acelerado, senti o excesso de tremedeiras a me levar a uma situação em que iria sucumbir. – Chefe, apressa o sedativo, vou entrar em choque, disse ao enfermeiro.
O tio disse que eu ‘tremia, coitadinho’. Mas falava, eu falava, procurava me divertir. A consciência me entretinha, fazia rir. Toca a dizer bobagem, porque se não resolve, alivia. Tipo na vida, mesmo. A dúvida do médico era: pro raio x direto ou sedativo? ‘Dopa eu, doutor’. Além de ser legal, vai ser muito necessário, porque só a ideia de dobrar o joelho e o tornozelo me arrepia nesse instante.
Leve, easy, amigável. Esse era eu depois de algumas cositas na veia. Me leva pra xerox. Tive certeza que o radiologista era corintiano só pelo jeito como gritou alguma coisa no fim do corredor. Mas me tratou feito são paulino. E eu gritei feito são paulino a cada movimento que ele pedia para encaixar o pé e o joelho. Pra cima, pra baixo, de lado, oblíquo. Isso porque foi com doping.
O Brasil haveria de ser eliminado nos pênaltis pelo Paraguai dali alguns minutos. Mas isso não importava. Sem fraturas, disse o doutorzinho. Mas tem lesão de tendão ou ligamentos. Só vai dar pra ver quando desinchar. Uma semana de tala de gesso.
E ela passou bem até. Em sete dias me alfabetizei com muletas, claro que ainda estou juntando sílabas, mas me comunico pela casa toda. Banho é um happening, can’t deny. Carinho, cuidados e atenção de todos. Até dos mais distantes. Enfim, na média, os ralados doeram mais.
E é aí, na sexta-feira, que entra a melaleuca. Plantinha australiana batuta, que vem em forma de óleo, para dissolver em creme. Potente. Cheiro forte, não desagradável. Recomendação da amiga e xamã Lisandra. Cicatrizante poderoso, como nunca imaginei. As casquinhas dos meus ralados foram-se indo formosas de ontem pra hoje, dando lugar a uma pele nova, rosada, mas forte apesar de jovem.
Mas quem sabe o que me interesse seja o que vem junto com essa cicatrização. O poder de ver sua pele se refazer hora a hora diante dos teus olhos também te faz refletir na capacidade das coisas dentro de você se reconstruírem, se reestruturarem e reerguerem. Robustas, fortalecidas e mais versáteis até. Gosto do conceito de resiliência, pela mobilidade e flexibilidade que implica.
O tombo, o acidente – seja lá como chame – não virou uma reflexão sobre pedalar ou não em São Paulo, mas algo maior. ‘Aproveita pra pensar na vida’, foi a segunda frase mais escutada na semana, depois de ‘você tá bem?’.
A imobilidade e a incapacidade física despertam outras capacidades. E perceber isso em uma semana de confinamento foi lindo. A reflexão, o entendimento e a percepção são uma espécie de melaleuca da alma.
domingo, 24 de julho de 2011
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