terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Melhora aí

Em uma semana atravessei apenas duas vezes o portão do lar para ir a mais de um quilômetro deste sofá. Mas como banca de jornal, de dentro do carro não conta, digamos que hoje foi a primeira. Sim, ainda estou passando catapora (como este verbo é mais light que 'transmitindo', né?), mas fui num lugar onde poderia ser tanto algoz como vítima.

Dentro do pronto socorro da Santa Casa de Misericórida de São Paulo ninguém é culpado. Nem mesmo os médicos, que escolheram trabalhar com aquilo, queriam estar ali. Não é tensão o que corre, ou melhor, o que dribla macas, naqueles corredores. É sofrimento puro e destilado. Tensão talvez seja a palavra que melhor expressa a sensação que paira num jornal instantes antes de um fechamento. Mas se comparado com um frame deste lugar, é uma verdadeira volta na pracinha de Cambuí com algodão doce e vovôs assoviando.

Idosos e idosas sobram na figuração. Deitados ou cuidando dos moribundos em macas enferrujadas milimetricamente largadas nos estreitos corredores. Não viam a luz do dia. Ou da noite. Não pense que era um ambiente sujo, só que infelizmente a dor, apesar de cristalina e autêntica, não é limpa.

Num banco de aço, batendo papo com uma bonita doutora de jaleco e crachá, este paciente. Porque cargas d'água ele aguarda ali, sua vez, para ser atendido por algum qualificado clínico do PS. Verdade seja dita, 'sua vez' não, ele aguarda ali para furar a vez de alguém, já que a boniteza ao seu lado é sua prima, que é estudante, que namora um residente, que é faz tudo ali. Será que quem fura fila não tenho peso na consciência? Será que ele tenho direito de reclamar de corrupção, de gritar palavras de ordem e mostrar dedo pra polícia em manifestação na Paulista?

O silêncio temperado de murmúrios daquela fábrica (ou oficina mecânica) de dor foi cortado por gritos. Não eram de pacientes, mas de uma impaciente médica que vinha montada sobre um homem em cima de uma maca tentava reanimá-lo com massagem cardíaca. Quase como uma surfista de jaleco, ela fez com que todos se espremessem entre seu veículo e a parede para não serem atropelados a caminho da sala de trauma. E eu só tinha tosse, supeita de pneumonia á descartada com raio X, além da minha catapora quase sarando.
- Aquela ali na maca é a doutora que vai te ver, mas pelo jeito vai demorar um pouco.

No fim não veio aquela médica excêntrica (lamentam os dramáticos), mas foram só cinco minutos da atenção de uma nipônica de palavras certeiras sem serem escassas, de perguntas precisas, mas não insensatas, que ficava estranhamente interessante naquele jaleco branco. Adorei sair de uma consulta pela primeira vez nessa encarnação sem nenhuma receita além de repouso, limpeza com soro no nariz, boa alimentação e isolamento.
- Não, doutora, mas 15 dias de licença vão matar minha chefe do coração.
- Antes ela do que todo mundo em volta. O que você tem é sério, amigo.

E antes do clicar do carimbo médico, vejo a excêntrica a conversar ao meu lado. Contou que o paciente da 'prancha' hospitalar tinha ido tirar radiografia e que 'parou', mas o técnico não reparou que ele estava mais alvo que o lençol que o cobria. Quando chegou, percebeu que montar seria a única solução, e contou como desceu o elevador, e a adrenalina e o ineditismo daquela modalidade de reanimação. E no final, quando ela já quase ia embora se esquecendo de contar o desfecho, alguém pergunta.

- E o cara, tá vivo?

Com vivacidade e naturalidade de dar inveja a todos os que sofriam por ali, ela arrumou o cabelo, pegou sua prancheta e rumou ao próximo caso. Olhando para trás, disse sem peso.

- Não.

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